segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Manuel - Manueis

MANOEL DE BARROS



Uma Didática da Invenção (do O Livro das Ignorãnças)  1




(A)




VI







No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.


O delírio do verbo estava no começo, lá, Onde a criança diz:


Eu escuto a cor dos passarinhos.


A criança não sabe que o verbo escutar não


Funciona para cor, mas para som.


Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.


E pois.


Em poesia que é voz de poeta,


Que é a voz


De fazer nascimentos –


O verbo tem que pegar delírio.


C)












Paisagem noturna
MANUEL BANDEIRA  2



(B)





A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . .

E lá do fundo vem a voz

Humilde e lamentosa

Dos pássaros da treva. Em nós,

— Em noss'alma criminosa,

O pavor se insinua . . .

Um carneiro bale.

Ouvem-se pios funerais.

Um como grande e doloroso arquejo

Corta a amplidão que a amplidão continua . . .

E cadentes, metálicos, pontuais,

Os tanoeiros do brejo,

— Os vigias da noite silenciosa,

Malham nos aguaçais.





Pouco a pouco, porém, a muralha de treva

Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça

Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva

A sombria massa

Das serranias.





O plenilúnio via romper . . . Já da penumbra

Lentamente reslumbra

A paisagem de grandes árvores dormentes.

E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,

Tintas deliqüescentes

Mancham para o levante as nuvens langorosas.





Enfim, cheia, serena, pura,

Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,

Fazendo levantar a fronte

Dos poetas e das almas amorosas,

Dissipando o temor nas consciências medrosas

E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,

— A Lua

Assoma à crista da montanha.

Em sua luz se banha

A solidão cheia de vozes que segredam . . .





Em voluptuoso espreguiçar de forma nua

As névoas enveredam

No vale. São como alvas, longas charpas

Suspensas no ar ao longe das escarpas.

Lembram os rebanhos de carneiros

Quando,

Fugindo ao sol a pino,

Buscam oitões, adros hospitaleiros

E lá quedam tranqüilos ruminando . . .

Assim a névoa azul paira sonhando . . .

As estrelas sorriem de escutar

As baladas atrozes

Dos sapos.





E o luar úmido . . . fino . . .

Amávico . . . tutelar . . .

Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .




Teresópolis, 1912

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1 EM: http://www.museudapessoa.net/mdl/memoriasDaLiteratura/editorial.html

EM: http://www.jornaldepoesia.jor.br/manuelbandeira01.html#paisagem

A) EM: http://cronicasdaregina2.blogspot.com/2011/04/amando-o-maneca.html
B) EM: http://depressaoepoesia.ning.com/profiles/blogs/manuel-bandeira
C) http://poesia-potiguar.blogspot.com/2009_04_01_archive.html

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