quarta-feira, 16 de março de 2011

Mário in poesia

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Personalidade exemplar da nossa cultura brasileira, eis o que se pode dizer de mais elementar sobre o Mário de Andrade.

Escritor que se tornou além de um viajante cultural , um nome importante para a musicologia, para a etnografia e o folclore brasileiros. Mas é do viés poético de Mário que quero tratar.

Seu livro 'Pauliceia Desvairada" foi considerado pela crítica da época como o primeiro livro de poesia modernista. Saiu a público no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, em 1922.

São poemas que constróem um eu coletivo diante da cidade. Ao mesmo tempo há ali o registro nada fugidio do poeta em seu estado de alumbramento perante São Paulo. São flashes pessoais/impessoais que derramam amor em forma de palavras e imagens poéticas.


Vejamos alguns poemas de Mário para sentir os veios crítico, irônico, lirico e apaixonado, principalmente  pela cidade de São Paulo(4):


Eu sou trezentos...

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,

As sensações renascem de si mesmas sem repouso.
Oh espelhos, oh Pirineus! Oh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

(...)

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal toparei comigo...
Tenhamos paciência andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa

E então minha alma servirá de abrigo.


Paisagem nº 1

Minha Londres das neblinas finas...
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.

Há neves de perfume no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
Parecidas com as bailarinas...
O vento é como uma navalha
Nas mãos de um espanhol. Arlequinal...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
Um tralalá... A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
Para que haja civilização?

Meu coração sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
Dialoga um lamento com o vento...

Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
Dá uma vontade de sorrir!

E sigo. E vou sentindo,
À inquieta alacridade da invernia,
Como um gosto de lágrimas na boca...


O cortejo (5)



Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bom giorno, caro."

Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

Estes homens de São Paulo,
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
Parecem-me uns macacos, uns macacos.


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Mas para falar de sua poética, ninguém melhor que o próprio poeta, no Prefácio de "Paulicéia Desvairada":


"A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível. Ora, si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:



Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia
Comparece ante a austera e rígida assembléia
Do Areópago supremo...


Fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.

Explico melhor:

Harmonia: combinação de sons simultâneos.

Exemplo:

Arroubos...Lutas...Setas...Cantigas...
Povoar!...

Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico.

Si pronuncio Arroubos, como não faz parte da frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e que não vem. Lutas não dá conclusão alguma a Arroubos; e, nas mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia - o verso harmônico.

Mas, si em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia poética".


Mário in poesia nos inspira a realizar outras viagens pelo Brasil das Letras, assim como o artista polivalente o fez Brasil a dentro, quando tomou conhecimento de inúmeros aspectos culturais considerados essenciais a todos. Sua poesia, não só a "Paulicéia", mostra-se como uma janela de um comboio que ultrapassa as paisagens mais imediatas, a adentrar no simbólico, no mítico e no que há de mais poético em nossas brasilidades. Vale à pena o exercício dessa leitura.


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NOTAS:
(1) Quadro de Mário de Andrade pintado por Tarcila do Amaral - Fonte: http://www.capivari.sp.gov.br/
(2) Mário de Andrade em pintura de Lasar Segall (1927) - Fonte: http://www.dm.ufscar.br/~caetano/iae2004/G6/disco.htm
(3) Imagem-propaganda do filme Macunaíma - FONTE: http://museudainconfidencia.wordpress.com/2011/01/19/programacao-de-janeiro-cineclube-museu-da-inconfidencia/
(4) Os poemas 1 e 2 citados aqui são do livro ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987. As páginas citadas são, respectivamente: 211, 87-88.
(5) O poema 3 citado aqui foi publicado no livro de ANDRADE, Mário de. "Paulicéia Desvairada". IN:  Poesias Completas. São Paulo: Martins, 1966.
(6) Foto e Prefácio disponíveis em: http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/poesias/mariodeandrade-ocortejo.htm

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