Há algum tempo venho me interessando por um viés de pesquisa/estudo que se debruça sobre o corpo como uma espécie de avivador de memórias, um corpo que conta/canta/traduz algo sobre aqueles que precisam ser, ter voz e vez! Algo que se traduz da vida, pois quem rememora encena e (ri/a/)tualiza suas tradições.
Dentro de minhas (pre)ocupações acadêmicas, o corpo tem sido tema de reflexões de variada ordem, sobretudo no que diz respeito ao registro, a atualização e a retomada crítica do passado. São temas que há muito estão como que esquecidos e hoje, na era que se convencionou a chamar de contemporaneidade ou pós-tudo, há espaço pra tais matérias.
Vivemos um tempo em que o corpo é objeto de poder e fetiches, da banalização e da vida como espetáculo e mercadoria. Vejamos, a exemplo, as novas modalidade de escravos: crianças-soldados a serviço de guerras insanas, homens-mulheres-crianças a serviço do sexo.
Pessoas como Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, Carlinhos Brown, para citar apenas os três, entre tantos nomes importantes, mostram a nós - a humanidade -, que é preciso olhar além das coisas, não somente ver o sofrimento humano, mas registrá-lo em arte, para que, com outros olhos, possamos iluminar os caminhos da mudança, gestar/gerir liberdades.
Na voz, no registro literário ou no batuque do tambor estas pessoas, latinoamericanas como nós, ensinam que o corpo também pode ser palco e poder, quando bem direcionado em prol de mudanças sociais. Corpo que fala, canta, conta ou traduz o que outros corpos/pessoas não o podem fazer, por questões essencialmente educacionais, políticas e sociais, mas não só.
Mercedes destinou sua voz/corpo para cantar as necessidades básicas de sobrevivência de nossos irmãos latinoamericanos, principalmente, fazendo eco e fazendo-se reconhecer mundialmente por seu canto-causa. Na interpretação de uma canção para niños, aparentemente singela - "Duerme negrito"-, embute-se a força feminina diante do poder patriarcal e da expoliação pelo trabalho. Vejam/ouçam a canção aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=gKgEBBUI6U4
Atahualpa Yupanqui, escritor, músico e recompilador das tradições orais e folclóricas da Argentina (também amigo de Mercedes), registrou em sua obra polivalente não só a riqueza das tradições de seu povo, mas sobretudo deu voz as causas sociais de seu tempo. Leiam o trecho de um de seus livros:
"Corre sobre las llanuras, selvas y montañas, un infinito viento generoso.
En una inmensa e invisible bolsa va recogiendo todos los sonidos, palabras y rumores de la tierra nuestra. El grito, el canto, el silbo, el rezo, toda la verdad cantada o llorada por los hombres, los montes y los pájaros van a parar a la hechizada bolsa del Viento.
Pero a veces la carga es colosal, y termina por romper los costados de la alforja infinita.
Entonces, el Viento deja caer sobre la tierra, a través de la brecha abierta, la hilacha de una melodía, el ay de una copla, la breve gracia de un silbido, un refrán, un pedazo de corazón escondido en la curva de una vidalita, la punta de flecha de un adiós bagualero.
Y el viento pasa, y se va. Y quedan sobre los pastos las "yapitas" caídas en su viaje.
Esas "yapitas", cuentas de un rosario lírico, soportan el tiempo, el olvido, las tempestades.
Según su condición o calidad, se desmenuzan, se quiebran y se pierden. Otras, permanecen intactas. Otras, se enriquecen, como si el tiempo y el olvido -la alquimia cósmica- les hicieran alcanzar una condición de joya milagrosa.
Pero llega un momento en que son halladas estas "yapitas" del alma de los pueblos. Alguien las encuentra un día. ¿Quién las encuentra? Pues los muchachos que andan por los campos por el valle soleado, por los senderos de la selva en la siesta, por los duros caminos de la sierra, o junto a los arroyos, a junto a los fogones. Las encuentran los hombres del oscuro destino, los brazos zafreros, los héroes del socavón, el arriero que despedaza su grito en los abismos, el juglar desvelado y sin sosiego.
Las encuentran las guitarras después de vencido el dolor, meditación y silencio transformados en dignidad sonora. Las encuentran las flautas indias, las que esparcieron por el Ande las cenizas de tantos yaravíes.
Y con el tiempo, changos, y hombres, y pájaros, y guitarras, elevan sus voces en la noche argentina, o en las claras mañanas, o en las tardes pensativas, devolviéndole al Viento las hilachitas del canto perdido.
Por eso hay que hacerse amigo, muy amigo del Viento. Hay que escucharlo. Hay que entenderlo. Hay que amarlo. Y seguirlo. Y soñarlo. Aquel que sea capaz de entender el lenguaje y el rumbo del Viento, de comprender su voz y su destino, hallará siempre el rumbo, alcanzará la copla, penetrará en el Canto.
Extraído del libro "EL CANTO DEL VIENTO", 1965 -
http://www.fundacionyupanqui.org.ar/viento.html
Sintam aqui, em rápidas palavras, a profundidade do espírito de Atahualpa Yupanqui, que se imortalizou pela música, pelas letras e pelo amor a seu povo:
Las "10 DEFINICIONES" por ATAHUALPA
-EL HOMBRE
El mejor paisaje.
-EL ARTE
Un tremendo desvelo.
-A LA LUCHA
Un viejo pleito entre la mentira y la verdad.
-AL MUNDO ACTUAL
Un hormiguero pateao.
-AL CANTO DEL HOMBRE
Una manera de llamarlo a Dios para el gran diálogo.
-A LA DEMOCRACIA
La más bella flor en lo alto de una rama.
Unos estiran sus brazos para alcanzarla. Otros quieren bajarla a balazos. Quizá creciendo en luchas y bondades infinitas, la flor llegue a nosotros. Amén
-A LA LIBERTAD
Único aire para la vida. (Cualquier parecido será aire acondicionado)
-AL AMOR
Una fuerza cósmica, capaz de elevar al hombre o hundir, o transmutar.
-A LA FE EN DIOS
Una clara luz, que impone enorme obligaciones.
-A LA PATRIA
Pedacito de tierra que resume la universalidad del hombre.
Esse ano, 2011, é considerado o ano da Percussão. Por iniciativa de Carlinhos Brown, mentor do tema: “Percussão pura que Deus mistura”, uma das vertentes do Carnaval de Salvador é também a Percussão, como meio de reverenciar e homenagear grandes metres dessa arte, como Fialuna, Pintado do Bongô e Neguinho do Samba.
(1)
Em entrevista a uma emissora de TV nacional - a BAND ( 1-
http://www.band.com.br/bandfolia/videos.asp?v=2c9f94b52e57bec2012e6c3b3c3d0765 2-
http://www.band.com.br/bandfolia/videos.asp?v=2c9f94b62e57bf1e012e6c3cc1e006ba ), o músico baiano demostrou por meio de sons e palavras a importância de fazer e respeitar a percussão hoje, por uma questão de ancestralidade. Era esse tipo de som que os antigos escravos tocavam nas senzalas e que também foi alvo de discriminação. Então, valorizar e revitalizar a Percussão na Bahia e no Brasil, principalmente, é fazer vibrar esse som vivo, ancestral, que está em nós. É fazer um registro que repercutirá rumo ao futuro. Mais que valorização, a Percussão via Carlinhos Brown made in Bahia, expõe permanentemente uma arte coletiva africana e já afrobrasileira. Traz do/no corpo a memória dos velhos e sábios mestres do ofício ligado aos ritmos sagrados. Assim se faz cultura, sem deixar morrer o que está na base da nossa brasilidade, as raizes da cultura afro, dentre outras.
SEM CONCLUIR
Registro aqui esse salpicão de ideias e reflexões que precisam entrar uma vez mais na ordem do dia. Prestar atenção nesses pequenos e únicos retalhos de vida nos dá pano e linha para compreender que a existência precisa de cuidados, de escuta e olhares atentos para ver o que muitas vezes não pode e não quer (ou não deixam) ser visto.
Saudações de fraTERNURA (como diz o querido Miguel Almir Lima Araujo, Professor de Filosofia da UEFS).
Andréa do N. Mascarenhas Silva
UNEB
-----------
(1) FOTO de C. Brown:
http://www.zwelangola.com/index-lr.php?id=4367 - sobre o músico, vale à pena conferir a entrevista no mesmo link. E essas aqui tb:
http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/carlinhos+brown+apresenta+seus+adobros/n1237864420092.html
http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/o+que+a+gente+quer+e+uma+franchising+de+acaraje/n1237864460513.html